Folhetim por Licínia Quitério | “Dona Clotilde” – (7º. Episódio)

Licínia Quitério

Folhetim por Licínia Quitério 

“Dona Clotilde”  – 7º. Episódio

Só mais um impulso, bem controlado, e a carapaça voltaria a erguer-se sobre as patitas retorcidas, cambaleantes, a princípio, mas capazes de a tirar debaixo daquele tapete que ameaçava sufocá-la, antes que a curiosidade de algum gato a descobrisse e, num gesto ágil, lhe desfechasse o golpe final.

Deles, nem sinal. Até ao dia em que o telefone retiniu pelas concavidades da casa, de súbito desperta. Atendeu, toda a tremer. A voz dele, num sussurro: “Quero ver-te. Precisamos falar. Eu explico tudo.”. Um tampão na garganta, um zumbido a atravessar-lhe as têmporas. “Está? Está?”. A voz dele, numa interrogação onde se percebia insegurança. Alguém, que não ela, respondeu finalmente por dentro da sua voz: “És tu, Tavinho? O que aconteceu?”. A voz dele, a insistir, já mais seguro: “Precisamos falar. Não te aflijas que tudo se vai arranjar. Confia em mim.”. A mão que segurava o auscultador foi descaindo, o som da voz dele continuando, afrouxando, até não se fazer entender. Desligou. A voz do Tavinho, em eco: “Confia em mim.”. Sentou-se devagar no cadeirão de verga, apoiou as mãos no colo, o olhar fixo nas grandes flores dos cortinados de cretone. Assim ficou, até deixar de sentir as pernas, dormentes como a sua vida.

Graças, mais uma vez, à bondade do senhor doutor Justino, a troco de uns pratinhos de Cantão que ele dizia não querer aceitar, conseguiu aquele emprego no escritório. A princípio, custou-lhe um bocadinho adaptar-se. Havia dias em que parecia que tudo lhe saía mal. Enervava-se. O cordel embaraçava-se, o tubo de cola esguichava por um furinho imperceptível que, só muito tempo depois, soube ter sido feito com um alfinete pelo “marroto” do senhor Martinho, um mulato danado para a brincadeira e que lhe dizia com a boca e as vogais muito abertas: “Ah Dóna Clótilde, se a senhóra quisesse, podíamos ser tão felizes! Cá o préto nunca se nega a um bom pedaço de mulher.”. Habituou-se depressa àquele novo mundo, povoado de gente diversa, de cuja existência não suspeitara nas suas anteriores vidas de piano e de cretone. Certos dias, até arriscava trautear passagens duma ária da “Trraviata”, que os colegas aplaudiam. Invariavelmente, um deles murmurava: “HuumHoje há moiro na costa!”.

(continua)

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial.
Quando chegou à reforma decidiu publicar o que escreve.
Tem neste momento publicados seis livros de poesia e três de prosa (contos e romance).

 


Pode ler (aqui) as outras crónicas de Licínia Quitério.


 

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